Sustentabilidade não pode ser um modismo

“Um dia, não falaremos mais sobre “sustentabilidade”, e poderemos dizer que ela saiu de moda – mas neste dia ela terá sido internalizada como um novo paradigma da sociedade como um todo; logo, será o senso comum, o normal”. Essa é a vontade de Lilyan Berlim que trabalha com moda há mais de 30 anos e estuda intensamente a relação das marcas com a sustentabilidade.

Tanto que depois de cinco anos de pesquisa, lançou o livro “Moda e Sustentabilidade – Uma reflexão necessária”, que trata de moda e dos princípios da sustentabilidade, propondo uma maior contextualização dos assuntos e reflexões sobre nosso estilo de vida, nossos hábitos de consumo e modelos de negócios, deixando de lado todo e qualquer “modismo” sobre o tema.

“São as corporações e os empresários que ‘ainda não se deram conta’ que fizeram da sustentabilidade um modismo – o que de certa forma, mesmo que tenha servido para difundir o conceito, criou um reducionismo da questão e muitos, muitos equívocos. A questão é bastante complexa porque estamos em transição e porque é uma questão nova, que nos impõe problemas novos e outras dimensões dos problemas antigos”, comenta a autora.

Lilyan pode falar com tranqüilidade sobre o tema. Conhece a causa como ninguém, já que atua tanto no lado acadêmico como no do negócio de moda. É doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Ciências Ambientais pela Universidade Federal Fluminense. Trabalha como designer têxtil desde 1984 desenvolvendo estampas e projetos para grandes marcas do Rio de Janeiro. Atualmente, coordena a pós graduação em Design de Moda com foco em Sustentabilidade da Universidade La Salle, no Rio de Janeiro. É, ainda, docente das universidades Veiga de Almeida e Cândido Mendes, e há 10 anos atua como gestora do curso Moda Contemporânea em Paris, onde ministra aulas nos museus do Louvre e na ESMODE Internacional.

Com essa extenso currículo na bagagem, ela respondeu as seguintes perguntas sobre o assunto:

MHS: Porque a escolha deste tema?

Lilyan Berlim: Porque precisamos que designers de Moda tenham conhecimento real sobre Desenvolvimento Sustentável – Sustentabilidade. Sou designer têxtil e trabalho com moda há muitos anos – tenho um ateliêr e sempre me preocupou os resíduos das minhas atividade. Morei na Amazônia por alguns anos e o mundo natural me encanta – quando observei pessoas falando de ecomoda, moda sustentável, etc. Sem nenhum conteúdo científico e muito conteúdo promocional, decidi que iria investigar a fundo esta área. Fiz, então, um mestrado em Ciência Ambiental e estudei tudo que foi possível em termos de sustentabilidade e moda, de consumo consciente a gestão de detritos, materiais, etc.

MHS: Hoje  em dia sustentabilidade é uma preocupação constante do mundo da moda ou ainda é um modismo?

Lilyan Berlim: Acho que deveríamos dar mais importância e valor ao mundo da “moda” – porque ele tem “valor”, logo, seus habitantes pensam, refletem e sabem que o desenvolvimento sustentável é o futuro – não há nada de modismo nisso, e sim de uma visão contemporânea de mundo. A indústria têxtil mundial é a terceira maior do mundo e uma das mais impactantes. Os grandes varejistas de roupas do mundo (H&M, C&A, Primark e outros) já implantaram seus projetos de desenvolvimento sustentável – alguns maravilhosos e todos bastante sérios. Entretanto, também existem aqueles que ainda não se deram conta de nada, aqueles que ainda acreditam que os recursos são infinitos e que o trabalho escravo (em sub-condições) é uma prática normal…. bem, estes ainda precisam de muita educação para chegar lá. Mas, um dia, também, vão chegar, porque o consumidor vai chegar lá antes  e vai demandar posturas corporativas mais responsáveis. São as corporações e os empresários que ‘ainda não se deram conta’ que fizeram da sustentabilidade um modismo – o que de certa forma, mesmo que tenha servido para difundir o conceito, criou um reducionismo da questão e muitos, muitos equívocos. A questão é bastante complexa porque estamos em transição e porque é uma questão nova, que nos impõe problemas novos e outras dimensões dos problemas antigos.

Finalizando, sustentabilidade não é moda. Ela será incorporada e daqui há alguns anos não falaremos mais tanto assim dela porque ela será o senso comum.

MHS: Como é a preocupação dos estilistas brasileiros com este tema?

Lilyan Berlim: Acho que o certo seria nos perguntarmos onde estão os estilistas brasileiros e os designers de moda e se eles têm condições de atuar de fato responsabilidade socioambiental em suas áreas. A questão é embaçada. Minha pesquisa sobre esta percepção, feita com aproximadamente 600 designers, mostra que a grande maioria se preocupa sim, mesmo não sabendo exatamente do que se trata. Mas se olharmos a nossa importante e fragmentada indústria têxtil, não encontramos muitos estilistas cujos trabalhos de fato contemplem esta preocupação.

MHS: No cenário internacional, as perspectivas da economia de moda e a sustentabilidade são mais avançadas do que aqui no Brasil?

Lilyan Berlim: Temos vários cenários internacionais (América do Norte, China, outros países do Oriente, países Sul-americanos, etc.), mas vamos nos focar em dois: o cenário europeu e o nacional.

As perspectivas européias de investimento em desenvolvimento sustentável na área têxtil é crescente e está relacionada a uma demanda do consumidor europeu; inúmeras pesquisas apontam que empresas (de toda e qualquer área) que investem em ações sustentáveis têm uma melhor performance financeira porque promovem uma imagem mais ética, geram mais confiança e portanto, vendem mais (sejam serviços ou produtos). Um bom indicador das adequações que os grandes grupos vêm fazendo são os projetos e ações dos conglomerados de Luxo, LVMH e PPR e os projetos dos grandes varejistas mundiais de têxteis.

Um outro indicador de uma transformação na área é a nova geração de designers europeus – especialmente aqueles provenientes dos mestrados em Sustentabildiade e Moda do London College e da Esmode Berlim, das graduações da Saint Martin e de vários outros cursos de Fashion e de Design: eles não apenas estão criando de forma mais ética (leia-se aqui ‘sustentável’) mas estão principalmente instaurando novos modelos de negócios na área através de plataformas digitais, Open Soucer Design (fontes abertas de informações e trocas como o YouTube, a Wikipédia) e outras ações que envolvem redes, economia, ‘fair trade’ (comércio justo) e ações como o sharing design (Design compartilhado)

MHS: Há quanto tempo estudo o tema?

Lilyan Berlim: Estudo a área há cinco anos e trabalho com moda há 30 anos. Atualmente, faço um doutorado em Ciências Sociais, para me aprofundar no que acredito ser o mais importante ator do futuro no cenário de Moda: o consumidor.

MHS: Como garantir a sustentabilidade em toda a cadeia de valor da moda?

Lilyan Berlim: Primeiro precisamos entender que ainda não temos uma ‘cadeia de valor na moda’ – precisamos construir este conceito. O que temos agora são cadeias ‘produtivas’.

Não existem ações 100% sustentáveis, nem conseguiremos em médio prazo garantir sustentabilidade em ‘toda’ a cadeia produtiva.

Se, de fato, gerássemos ‘valor’ para esta cadeia em todas as suas etapas, conseguiríamos torná-la mais digna socialmente e ambientalmente. Existem três pontos a serem observados e revalidados:  A produção (cadeias de produção em toda a sua dimensão – da criação original à confecção legal); a percepção do consumidor, especialmente a do neo-consumidor (que está se formando);  e a comunicação ética e transparente entre a marca e o consumidor – que o informaria sobre a sustentabilidade do produto. Desta maneira conseguiríamos caminhar com seriedade para a geração de uma cadeia de ‘valor’ na moda.

Uma realidade que percebemos e que pode ser alterada apenas  com supervisão e rastreio é aquela das terceirizações da indústria de confecção – basta atuar com responsabilidade social, e saber exatamente quem está fazendo sua roupa e em que condições – isso não me parece tão complicado nem tão caro, é uma questão de “vontade de fazer  e de comprometimento ético”.

MHS: Há envolvimento de entidades como Abest, Fiesp, Firjan nesta tema?

Lilyan Berlim: Muito, pois nossa indústria têxtil representa o quarto parque têxtil do planeta  e o único do ocidente com o ciclo completo da indústria têxtil – estas entidades  têm real noção do que se trata ‘Responsabilidade socioambiental’ e lutam por isso em todos os sentido.

A  proteção, o fomento ao desenvolvimento, a geração de empregos, a legalização e a força política da indústria têxtil nacional, que emprega em torno de 8 milhões de brasileiros, são objetivos claros destes órgãos. Sustentabilidade está relacionada a DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL – foco fundamental para o futuro.

MHS: O que fazer com o desperdício de matéria-prima?

Lilyan Berlim: Se pensarmos em ‘produto’, acho que apenas o design e sua interlocução com outras áreas, como engenharia têxtil e de produção (entre outras),  pode resolver esta questão – a idéia é não gerar desperdício, não gerar efluentes, não gerar detritos na produção de todo e qualquer produto têxtil. Acontece que ainda não entendemos bem, em termos de produção, o papel do design contemporâneo, o Ecodesign – ou design de ciclo fechado, porém, com o tempo iremos compreender e acabar o desperdício, para isso temos que construir este conhecimento.

Agora,  nossa realidade e necessidade é de gerenciamento ambiental de detritos e efluentes.  A implantação de Sistemas de Gestão Ambiental na indústria é vital. Outro ponto importante é o fomento à PL (Produção Limpa) enquanto paradigma industrial.

MHS: Conhece o projeto Traces da Osklen que mede a pegada de carbono na produção de roupas. O que acha dele?

Lilyan Berlim: Conheço o Traces, o Instituto E, que é uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) e sua diretora,  a antropóloga Nina Braga, que escreveu o prefácio de meu livro. Gosto muitíssimo – afinal, é um projeto que não trabalha apenas com a pegada de carbono, mas rastreio de produtos menos impactantes e de suas possibilidades  – o que beneficia comunidades, grupos de artesões, pequenas tecelagens, e  outros  por todo o Brasil. Ou seja, o Traces, seguindo as princípios que balizam o próprio Instituto E,  trabalha com dimensões sociais, econômicas e ambientais que, apesar de  não são claramente percebidas agora, serão fundamentais para o futuro e para a sociedade. Parece muito? Não é não – o futuro nos reserva surpresas; ninguém escapa do uso de roupas, e tudo que é seriamente feito nesta área está moldando o futuro  das novas gerações sim.

MHS: Qual o futuro da moda e sustentabilidade?

Lilyan Berlim: O futuro está sempre em construção; o que percebo é que países como Inglaterra e Itália estão em fases diferentes da nossa  nesta área, e que também possuem realidades ambientais e sociais muito distintas das que vivemos. Temos que observá-los, adequar seus modelos à nossa realidade, aprender, trocar, ensinar, criar novos padrões, etc. Temos ainda um longo caminho pela frente, e é preciso antes de qualquer coisa gerar conhecimento nesta área – fomentar informações, falar sobre isso e , especialmente combater a idéia de que moda é uma área de gente desinformada e irresponsável.

Um dia, não falaremos mais sobre “sustentabilidade”, e poderemos (aí  sim) dizer que ela saiu de moda – mas neste dia ela terá sido internalizada como um novo paradigma da sociedade como um todo; logo, será o senso comum, o normal.

A moda expressa o ser humano há milênios, e nos expressará neste momento em nossas roupas, objetos e consumo – também tanto quanto nos expressa agora.

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