Cenas de peça “Sóbrios” com direção de arte de Flávio Graff. Crédito: Lucas Zappa/ Estúdio Beringela
Às 21 horas, quando as portas do Teatro Tom Jobim, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, se abrem, o público estranha a disposição da cadeiras e palco. Na peça “Sóbrios”, sucesso na off-Broadway, o que se vê são 4 cenários espalhados e cadeiras colocadas de forma a criar uma interação e um certo “desconforto”.
Pelo menos essa é a proposta do diretor de arte Flávio Graff. “O palco comum mantém nosso olhar no lugar ordinário. É possível à arte tirar o corpo do conforto do lugar ordinário?”, provoca o artista, no espetáculo que marca a estreia de Erika Mader na direção.
Se para Erika é um nova experiência, Graff já tem uma longa estrada percorrida, sempre com trabalhos muito instigantes. Pois, ele não se prende a um único ofício. Está à serviço da arte como diretor, dramaturgo, ator, músico, cenógrafo, figurinista, produtor e na origem, jornalista.
Na sua extensa atuação, não faltaram prêmios e reconhecimento. Foi indicado ao Prêmio Shell, APCA, Contigo e Questão de Crítica por trabalhos como “Outside, um Musical Noir”, “Orlando”, “Deus da Carnificina”, “Sonho de Outono”, entre outros. E, um trabalho seu, a cenografia do espetáculo “O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo”, que recebeu o Prêmio Golden Triga, foi exposta na Quadrienal de Praga de 2011.
Dirigiu e criou ainda os espetáculos “Primeiro Dia”, com Patrícia Niedermeier, e “O Mundo dos Esquecidos”, com Eliane Giardini, Silvia Buarque e Gisele Fróes. Integrou Núcleo Artístico da Cia. Teatro Autônomo, entre 2001 e 2008 e é professor de direção de arte e cenografia da Escola de Belas Artes da UFRJ.
Nesta entrevista ao Movimento HotSpot fala como a vida lhe inspira e como é graficante não ter rótulos ou formas que limitem a sua criatividade e atuação.
MHS: Você atua em diversas frentes. Como é ser um artista multimídia?
Flávio Graff: Sou um ser inquieto por natureza. E nessa inquietude o que me instiga a prosseguir é a não repetição. É poder expressar as angústias e delícias do viver, das descobertas, de compartilhar o inédito, de provocar o olhar e a sensibilidade do outro no impensado, nas experiências do encontro. Não pensar que uma forma me limita, significa que o que eu digo ou como digo pode ser expresso em caminhos multidirecionais, que me permitem construir uma arquitetura de desejos de futuros, de novas percepções, onde posso a cada dia me reconstruir. O risco e o abismo fazem parte desse processo, onde me interessa conversar com cada um no lugar fronteiriço, entre um ambiente e outro, o “não lugar”, onde, nem que seja por alguns momentos, eu não saiba onde estou nem quem eu sou, ou o que posso fazer. Eu preciso entrar e tirar do lugar, o lugar. Tornar preciso o redescobrir e o reinventar “o lugar” onde podemos estar. O que acontece a partir daí? O que surge dessa fricção? O que me impulsiona acordar de manhã e pensar que preciso me levantar, comer, me vestir, corresponder às ações mais ordinárias da vida sem que a vida se torne ordinária, banal e sem sentido? Os caminhos múltiplos abrem perspectivas de encaminhamento e de possibilidades infinitas para se trilhar a vida, feliz.
MHS: Como é ter uma obra sua em museu?
Flávio Graff: Expôr uma obra no museu pode ter um caráter libertário ou aprisionante. Se pensarmos pelo sentido de que a obra pode ser fruída mais livremente pelos olhadores, conquistamos um status mais singular e autônomo para peça – isso é interessante de se pensar e de se descobrir. No entanto, se ela ocupa um espaço de “peça de museu”, com sua carga de historicismo, etc., com aquele status aurático, que pode ser capaz de devorar sua força provocativa, condenamos a obra a sua morte museológica. Isso já é um conflito mais difícil de se resolver, salvo as obras efêmeras que se esvaem em suas impermanências. Dessa forma, me interessam muito as performances e os sites specifics, obras com esse caráter que já tive a oportunidade de apresentar em museus e galerias.
MHS: Geralmente em seus trabalhos você criar cenários e figurinos. Fazer essa dobradinha é mais fácil do que criar separadamente?
Flávio Graff: Criar conjuntamente pode ser mais fácil para dar coesão aos elementos, sem dúvida, pois cada detalhe de uma ideia para um elemento de um figurino, por exemplo, pode ser rebatido ou incorporado na cenografia. Durante a criação da direção de arte da peça Sóbrios, o pensamento de que os núcleos de cada espaço cenográfico da história teriam cor forte específica, me instigou também no desenho dos personagens que estariam, como camaleões, metamorfoseados ao espaço em cor e textura, reafirmando o conceito de sonho e fantasia que tentamos abordar.
MHS: O que o jovem precisa para ser um bom cenógrafo?
Flávio Graff: Ser um esteta. Ser um observador e imaginador de espaços e de como eles podem ser capazes de contar uma história, traduzir uma sensação, de te deixar perplexo, sem dizer uma só palavra, e, em todas as suas lacunas, dizer tudo e ainda deixar aberto espaços para dizer mais, até o que você não imaginou.
MHS: Quais áreas um profissional de cenografia pode atuar?
Flávio Graff: Depende do cenógrafo. Existem cenógrafos e cenógrafos. Eu adoraria e poderia atuar na cozinha de um restaurante! Cozinhar é uma arte de criar espaços imagéticos que pra mim está muito próxima da cenografia. Antes de degustar um prato, o comemos com os olhos. As minhas cenografias são para ser comidas com os olhos e também com os corpos em todos seus campos de sentidos.
MHS: Como é seu processo criativo principalmente atuando em áreas tão diversas?
Flávio Graff: Criativo. Gosto das coisas que não estão prontas, que não estão dadas, que estão em vias de ser, esperando ser encontradas pelas esquinas, pelas ruas, esperando ser olhadas, esperando ser reinventadas. Contar uma história, não é reproduzir uma história, é inventar os meios para que um universo inteiro de experiências se fundem a nossa frente. E nessa busca há um lado imperativo da intuição que me guia, uma ciência quase que invisível, mas tão manifesta que se materializa nos sentidos mais comuns e que confirma sua potência quando se torna realidade e mobiliza o olhar do outro. Mas, paralelamente, há também um estudo aprofundado sobre o trabalho que desenvolvo e que tenta de alguma maneira racionalizar o subjetivo, criando uma trilha coerente para tais ideias abstratas, intuitivas, não para racionalizá-las num sentido banal, e sim devolve-las conscientemente ao seu limbo abstracional de onde cada um tentará, depois, catar seus fragmentos e construir a sua percepção sobre estes.
MHS: O que te inspira?
Flávio Graff: A vida.
MHS: Como foi a criação da cenografia de “Sóbrios”?
Flávio Graff: Foi como criar espaços a deriva que pudessem conter o naufrágio daqueles personagens em suas ilhas emocionais. No meio dessa deriva estamos nós espectadores “sóbrios”, mas também todos afundando em nossas intolerâncias, em nossos desejos de destruição e ressurreição. Os fantasmas que passaram por aqueles espaços somos nós que deixamos nossas marcas, nossos reflexos nos espelhos de cada dia, de cada parede de cada casa que habitamos e que repercutem no universo invariavelmente. As memórias, os afetos, os retornos, a impermanência, o insulamento e a morte. Esses foram motes e conceitos para a criação de Sóbrios.
MHS: Por que a opção de não ter um palco “comum” ?
Flávio Graff: O palco comum mantém nosso olhar no lugar ordinário. É possível à arte tirar o corpo do conforto do lugar ordinário?
MHS: Como “treinar” os atores para atuar em um cenário tão diferente?
Flávio Graff: Atuamos diariamente num cenário diferente, que é a vida, que nos absorve por todos os lados e por todos os sentidos. Já estamos “treinados” naturalmente para atuar neste tipo de espaço.
Cenas de peça “Sóbrios” com direção de arte de Flávio Graff. Crédito: Lucas Zappa/ Estúdio Beringela
SERVIÇO:
Sóbrios
Teatro Tom Jobim. Rua Jardim Botânico, 1.008 – Jardim Botânico.
Telefone: 2274-7012.
Até 14 outubro de 2012.
Sex e sáb 21:00 | dom 20:00.
Ingresso: R$ 60.00.