Escrever sobre criatividade brasileira sobre a ótica de seus criativos. Essa foi a missão da psicanalista Andréa Naccache, organizadora do livro “Criatividade Brasileira”, na qual Jum Nakao, Alex Atala e os irmãos Campana falam sobre suas histórias de vida, suas obras e processos de criação.
“Quis mostrar a criação como maneira do ser humano dar encanto à vida. Estas três áreas são as mais sensíveis às pessoas. Nelas, a mágica acontece diariamente. Com sutileza, gastronomia, moda e design habitam a nossa pele”, explica Andréa sobre a escolha dos seus entrevistados.
Além dos três destaques, o livro contém mais de 30 depoimentos de personalidades como Ana Carmen Longobardi, Alceu Baptistão, Charles Watson, Elenice Lobo e Gilson Domingues, Fernando Cocchiarale, João Marcello Bôscoli, Paula Dib, Paulo Borges, Reinaldo Pamponet, Ricardo Guimarães, Rico Lins, Roberta Cosulich, Stephen Rimmer formando um caleidoscópio de criatividade brasileira.
Andréa, que se dedica ao estudo da ética dos processos de criação e inovação, teve a colaboração da publicitária Ana Carmen Longobardi para finalizar o livro. Em entrevista ao site do Movimento HotSpot, ela fala do processo criativo, das histórias dos personagens, da importância da criatividade no ambiente criativo e do projeto do site que vai completar o material do livro com fotos, videos, links e outras referências.
MHS: Como você define a criatividade brasileira? Ela se difere do restante do mundo? O nosso “jeitinho brasileiro” também se destaca nesta área?
Andréa Naccache: Nossa criatividade tem peculiaridades fortes que afloram espontaneamente. Ao criar aqui, nós podemos, mas não precisamos fazer o esforço de nos referirmos ao Brasil, buscando temas e tons já estigmatizados como “nossos”. Os materiais e as preocupações locais sensibilizam os criativos. É isto que faz uma criação ser sentida ou interpretada como brasileira pela crítica. Fala-se bem disso no livro. Há, em especial, uma frase do Fernando Campana. Se o trabalho dos irmãos é “a cara do Brasil”, como dizem, ele responde: “Fazemos sem buscar o literal, sem querer ser folclóricos”. Se quisessem ser “brasileiros”, eles arriscariam repetir algum preconceito a respeito do país – ele previne.
Isso indica que o que somos não precisa de tantas definições. Podemos ser sem querermos saber tanto de nós, e deixar os outros dizerem depois o que acham. Os criativos, quando são capazes de emocionar, trabalham em muito com sutilezas e sem palavras, com “criaturas” surpreendentes até para eles mesmos, e que ganham nomes só mais tarde, interpretadas por uma multiplicidade de gente que irá inclusive discordar a respeito do que viu – e isso é posterior ao trabalho.
Quanto ao “jeitinho brasileiro”, não é tão fácil dizer se ele entra na composição de nossa criatividade. Jum Nakao nos lembra, no livro, o quanto é bom o criativo ser “maleável como o ar”, e saber aproveitar as contingências. Se pensarmos o “jeitinho” como tolerância e inclusão, será positivo à criação. Há uma ginga nossa, que fazemos especialmente bem, mas que aparece de outras maneiras também na criação internacional, quando os designers estrangeiros improvisam, ou quebram hierarquias e tradições. Talvez, fazer design exija sempre encontrar o “jeitinho”, uma solução ou traço pessoal do criador. Nossa peculiaridade é que talvez façamos isso muito em nossa cultura, em outras situações, habitualmente. O brasileiro se sente em casa quando precisa dar seu toque e travar embates íntimos com as coisas.
Por outro lado, não há “jeitinho” se pensarmos na agonia, na responsabilidade e até na racionalidade que podem estar presentes no processo criativo de nossos brasileiros. Eles são sérios quanto à competência técnica. Até a função da preguiça, para eles, no livro, é apresentada como uso inteligente e sensível do tempo. Não há malandragem possível no diálogo com os materiais ou com a história cultural que envolve um trabalho. Nisso, estamos no mesmo barco que os criadores internacionais, sem alívio.
Afinal, nossa “identidade” criativa de brasileiros talvez seja muito mais definida por olhares externos e permeada por aprendizados estrangeiros do que um purista gostaria. A criatividade brasileira pode desfilar sobrenomes tão multinacionais como Nakao, Atala e Campana.
MHS: Por que escolheu as áreas de gastronomia, design e moda para tratar esse tema?
Andréa Naccache: Quis mostrar a criação como maneira do ser humano dar encanto à vida. Estas três áreas são as mais sensíveis às pessoas. Nelas, a mágica acontece diariamente. Com sutileza, gastronomia, moda e design habitam a nossa pele. Não podemos nos esquivar delas. Nas três, é possível levar um produto rudimentar a uma obra criativa de excelência.
MHS: No final, você acrescenta depoimentos de outros profissionais. Há uma linha comum entre eles?
Andréa Naccache: Não – e isso é especialmente curioso. As entrevistas se tornaram um mix, pela diversidade de posturas entre os entrevistados. Os depoimentos foram colhidos à sorte, por indicações. Há desde pensamentos bastante abertos, até os mais diretivos, inflexíveis, que me preocuparam: às vezes imaginei se os entrevistados não viviam constrangidos por aquelas suas idéias. A cena franca das entrevistas pode render material para bastante reflexão. Quando penso nesses depoimentos, conforme a questão que tiver em mente, as linhas mudam: elas compõem um caleidoscópio.
MHS: Como se faz para ser criativo? É um dom ou a criatividade pode ser adquirida?
Andréa Naccache: Há quem pense que é dom, e quem recuse radicalmente essa idéia. Em muitos momentos no livro, fala-se que o importante é dar estímulos, exemplos, e que a pessoa que quiser criar saberá se virar com um bom repertório. Charles Watson também expõe processos cognitivos para os quais a pessoa pode se treinar como, por exemplo, romper categorias comuns de pensamento, fazer inversões, substituições, ou lateral thinking. Os macetes do processo criativo, a competência técnica e estética e os repertórios, portanto, podem ser adquiridos, mas dá muito trabalho. A formação pode ser árdua e o processo de execução de cada projeto, agoniado. É preciso conhecer intimamente o que há em um campo e ter a coragem de fazer ali nova proposta, e até mesmo atravessar a censura e o descrédito. Passar anos sem quase nenhum retorno, como contam os Campana.
A pergunta pode ser, então, o que leva alguém a se empenhar para isso? Este talvez seja o principal tema que me envolveu na composição do livro. É muito pouco dizer que as pessoas fazem porque gostam e dá prazer. Quem se propõe a criar algo para os outros vai, no esforço criativo, “além do prazer” – se pudermos ressoar Freud. Há grandes causas singulares em jogo. É quase como dizer que cada agonia criativa, cada processo criativo, é a resposta a alguma angústia. A pessoa opta pela maneira lúdica e desafiadora de viver. Sabendo que poderia mergulhar na indiferença, ou sofrer, ela prefere buscar o encanto. Não é diletantismo. Muitas vezes, é questão dar honra à vida.
MHS: Hoje, a criatividade passou a ser reconhecida como um diferencial na maioria da vezes, muito bem paga. Existe espaço para criativos e práticos em uma empresa? Como fazer esse mix sem cercear a criação?
Andréa Naccache: Nossa sociedade já têm condições de perceber as pessoas, em muitas situações, a partir de suas singularidades. Cada vez há menos necessidade de tratarmos as situações em blocos. A cultura e a tecnologia têm colaborado para que os seres humanos não sejam mais tratados como genéricos – para usar uma expressão de Jorge Forbes. Isso começa a ficar visível nas empresas, e depende apenas da sensibilidade dos gestores. É possível sim tratar equipes considerando diferenças internas, sem homogeneizar a formação, o comportamento, as entregas de cada colaborador. Ana Carmen Longobardi fala sobre isso em sua entrevista. Em termos organizacionais, permitir a singularidade é uma condição inicial para que o pragmatismo ou a criatividade aflorem em cada pessoa, conforme o projeto, considerando conveniência e circunstâncias. Mas isso causará um friozinho na barriga de todos. Até porque a singularidade só se torna plena quando associada a responsabilidades políticas, econômicas e criativas, que precisam estar muito bem atribuídas, pensadas caso a caso, projeto a projeto.
No livro, questionamos a idéia de que haja “criativos”, seres diferentes dos outros. Esses “bichos criativos”, diz o Jum Nakao, talvez só se distingam por lidar bem com limites em seu campo de trabalho, por suportarem bem as dificuldades para fazer algo novo ou de maneira nova. Quando as pessoas agüentam a hesitação e a ambigüidade, e topam trabalhar com os obstáculos, até da resistência e da crítica de outras pessoas, com resultados enriquecedores para todos, a criação vinga. Isso é uma atitude – como o pragmatismo – que pode ser transmitida, pode virar epidemia, e independe de formação e da competência intelectual. É ética.
MHS: Como a Academia pode ajudar as pessoas a se tornarem mais criativas?
Andréa Naccache: A academia é nosso ambiente, por excelência, para conservação e transmissão da cultura passada. Além disso, ela progrediu, nos últimos séculos, no sentido de uma segmentação. Isso serve bem ao senso de emprego dos acadêmicos – a especialidade de um termina onde começa a do outro, e todos têm importância. Mas isso sacrifica as matérias trabalhadas, que sempre são híbridas entre áreas, como analisa o antropólogo Bruno Latour. Finalmente, ao ser baseada no reconhecimento do saber, a academia requer provas seqüenciadas, que instituem uma hierarquia. Essa combinação de conservação, segmentação e hierarquia remunerada dão à academia uma enorme vocação para a burocracia. Causam o sentimento de que as coisas têm que ser feitas de certa maneira, e nunca de outra, que os entendimentos já estão estabelecidos, bem como as melhores metodologias. O mundo parece mais pronto e explicado na academia que em qualquer outro lugar. O oposto da criatividade.
Porém, a academia têm, nas duas extremidades da carreira, pessoas com condições de olhar para fora das muralhas, que não estão imbuídas da vida interna dos departamentos: são os recém-chegados, de perguntas frescas, e os pouquíssimos que passaram por todas as provas, ou se provaram fora do ambiente acadêmico, e já não têm muito mais a ganhar por fazerem bem as funções internas. É principalmente entre eles que uma química interessante acontece. Quem pode dar início à reação, portanto, talvez seja especialmente o grande professor. O jovem pode tentar seduzi-lo a um trabalho, mas o professor tem que estar acessível. Se o aluno for abandonado aos meandros da academia, será muito difícil algo de novo emergir: ele será censurado. Se o grande professor tiver a vontade de ver florescer a novidade, e puder achar graça na provocação política e intelectual que ela representa, sem medo, pode zelar para que seus jovens cresçam experimentando-a, e defendê-los. Penso que a oxigenação da academia depende do despojamento de grandes professores, os de voz forte, que não se sentem ameaçados, desde que considerem importante sacudir um pouco as estruturas.
Um exemplo é o Projeto Genoma, em São Paulo, que promoveu o encontro entre genética, medicina e psicanálise, com liberdade para trabalhar os temas híbridos, ao mesmo tempo humanos e biológicos, indo muito além da interdisciplinaridade convencional, dando suporte a jovens animados com novos processos e matérias. É um posicionamento heróico, que permite a esse segmento da academia não apenas conservar, mas também fazer história.
No livro, o Alex Atala nos lembra que, tradicionalmente, as boas idéias têm nascido fora dos ambientes “de excelência” de uma área, e os Campana dão seu depoimento sobre a liberdade de ensinar e aprender.
MHS: Das histórias que ouviu dos 4 convidados principais, qual lhe chamou mais atenção?
Andréa Naccache: O livro me emociona em muitas passagens e já se tornou comum, para mim, recordar depoimentos deles que me ajudem a trabalhar uma situação, ou sirvam como exemplo. A clínica, as empresas, e até o trabalho junto a um laboratório científico que acompanhei entre 2011 e 2012, muitas vezes me puseram questões que a experiência do livro ajudou a responder. O texto se tornou uma mina preciosa de idéias, sobre futuro, diálogo intercultural, educação, liberdade, paixão, luxo, história de vida e influência histórica, trabalho coletivo e individual, autoria, parcerias, que gosto de olhar por diversos lados. Tenho, de qualquer modo, um carinho especial pelo que o trabalho com eles mostra, como um todo: que podemos dedicar nossos dias a dar encanto à vida, porque o encanto acontece.
MHS: Quando o site http://www.manoleeducacao.com.br/criatividade/ entrará no ar? Como foi pensar em termos multimidia o aproveitamento do conteudo que organizou?
Andréa Naccache: Creio que o site ainda nos exigirá um pouco de trabalho, mas o queremos no ar nos próximos meses, para que o leitor possa ter mais intimidade com a cena dos debates. A internet hoje é insuficiente em conteúdo cultural aprofundado, e ela sempre estará devendo em algum aspecto, mas já tem um efeito virtuoso quanto às imagens. Hoje, está mais fácil que os nomes públicos sejam associados a um rosto, e que cada feito tenha sua foto, mesmo que ruim, em algum lugarzinho da web. Os vídeos dão dinamismo à percepção. Um de nossos desejos foi deixar no site uma série de links, especialmente de gastronomia, moda e design, para que o leitor pudesse acessar as imagens de outros autores, trabalhos de cada um dos envolvidos no livro, ou registros sobre os quais jamais teríamos direito de publicação. Há muito conteúdo citado nos artigos históricos, e uma parte dele pode ser vista em sites permanentes, confiáveis. A internet evidencia que cada obra, como nosso livro, ou todo trabalho criativo, é filhote de uma rede de cultura. Tem seus pais e, se for bem aceito, terá seus descendentes.