De um coração de menina ao carnaval de Recife

Joana Lira vestia a cidade de Recife com seus desenhos. Crédito: Josivan Rodrigues

Quem vê aquele menina pequena, de corpo franzino e sorriso fácil, não imagina que de suas mãos e de sua criatividade sem tamanho, saem desenhos e personagens que por 10 anos fizeram parte da cena do carnaval recifense. Para  a artista Joana Lira, foi a “experiência mais intensa, avassaladora e profunda que viveu”.

Nascida em 1976, em uma família cheia de artistas, hoje , mãe de dos filhos, tem paixão pelo desenho desde de criança e por isso, escolheu a faculdade de design gráfico.  A partir de uma exposição de pinturas chamada “Bichos Aloprados”, seu talento explodiu em cenários, ilustrações, brindes, esculturas, livros, revistas geladeiras, pacotes de bolacha e o que mais vier.

Há 13 anos, migrou para São Paulo “atrás do universal, do cosmopolita e do moderno, mas minha busca por algo diferente curiosamente me fez chegar nas minhas próprias raízes. Aprendi que só com o que eu tinha de mais puro e verdadeiro eu poderia me diferenciar aqui”, conta a artista.

Seu trabalho em Pernambuco está documentado no livro “Outros Carnavais”, na qual se pode observar sua leitura para obras de artitas como Ariano Suassuna (carnaval de 2006), Lula Cardoso Ayres (carnaval de 2007), Abelardo da Hora (carnaval de 2008), Cícero Dias (carnaval de 2009), Vicente do Rego Monteiro (carnaval de 2010), e Tereza Costa Rêgo (carnaval de 2011).

Na sua visão de trabalho, “realização e disciplina são palavras que andam juntas, grudadas.” Conheça mais do talento de Joana Lira, na entrevista abaixo feita exclusivamente para o Movimento HotSpot:

MHS: Como foi criar por cerca de 10 anos as ilustrações que adornaram a decoracao do carnaval de Recife? Como era o processo de criação anual? Partia de um tema dado ou você mesmo sugeria? Como é estar longe da folia agora? Essa relacão artista obra tem mesmo começo, meio e fim ou é eterna?

Joana Lira: O projeto de cenografia do carnaval do Recife é um trabalho coletivo, que conta com a presença de arquitetos, designers, ilustradores e consultores. O objetivo não é apenas vestir a cidade, mas envolver e convidar o folião a sentir o mundo de magia que é o carnaval do Recife, democrático e irreverente.

No período em que participei do projeto, de 2001 a 2011, passávamos cerca de oito meses trabalhando incessantemente, pensando em novas soluções de intervenção urbana, criando milhares de estudos e analisando o que tínhamos acertado e errado nos anos anteriores. Sempre iniciávamos o trabalho com a análise do ano anterior e assim que a prefeitura definia quem seria o artista homenageado do ano, começávamos a pesquisar a vida e obra dele.

O desenho sempre esteve presente na cenografia. Nos primeiros anos de projeto, ele era tímido e ficava em segundo plano. Dávamos mais ênfase à pesquisa de novas estruturas e aos experimentos de materiais. Quando ganhamos experiência, nos demos conta de que, para a cenografia ter uma interação mais forte com grande público, seria preciso que o desenho tivesse um peso maior no projeto. Conversamos com a prefeitura e, a partir de 2006, ficou estabelecido que todo carnaval teria um tema diferente, e este seria ditado pela vida e obra de um artista homenageado.

Como simplesmente copiar as peças artísticas do homenageado estava longe do nosso objetivo, passei a usá-las apenas como base. Partindo da ideia da livre interpretação, inseri novos traços, expressões, cores e detalhes para adequar a obra do artista ao tema carnaval e à facilidade de reprodução dos desenhos nas ruas. E assim tive o prazer de criar minha própria leitura da obra de Ariano Suassuna (carnaval de 2006), Lula Cardoso Ayres (carnaval de 2007), Abelardo da Hora (carnaval de 2008), Cícero Dias (carnaval de 2009), Vicente do Rego Monteiro (carnaval de 2010), e Tereza Costa Rêgo (carnaval de 2011).

Quando formamos a primeira equipe para pensar na cenografia eu estava com 24 anos, iniciando a minha vida profissional em São Paulo. Mesmo tendo criado diversos outros trabalhos antes, sem a menor dúvida fazer parte de um projeto desta dimensão por dez anos foi a experiência mais intensa, avassaladora e profunda que vivi. Até então, no meu ofício, para ter um bom resultado, sempre busquei harmonizar o emocional com o racional. Porém, por ter uma relação afetiva fortíssima com a festa, tudo neste projeto se misturou descontroladamente e isto foi me esgotando. Foi uma opção minha fechar este ciclo ao completar 10 anos de contribuição ao projeto, em 2011. Confesso que o primeiro ano sem fazer a cenografia do carnaval foi muito esquisito. Um mix de alívio e vazio me inundou. Afinal, não é todo dia que tenho a oportunidade de vestir uma cidade. A relação com a cidade e com o que vivi com o projeto está cravada na minha alma, mas acredito sim que uma obra tem começo meio e fim. E posso dizer ainda que o que sou hoje profissionalmente veio das oportunidades que este trabalho me trouxe e que eu soube aproveitar.

 

Carnaval de 2009 em homenagem à Cícero Dias. Crédito: Josivan Rodrigues

MHS: O simbolo do seu estúdio é um coração. É ele que te move? Como fica o racional em um trabalho tão criativo? Você é disciplinada ou não?

Joana Lira: Sim, a emoção é o que me guia. Para mim é importante que minhas criações provoquem sentimentos nas pessoas. Não vejo sentido um trabalho artístico sem alma. Acho que toda obra criativa para ser bem sucedida precisa de boas doses de subjetividade e objetividade. A subjetividade, para abrir caminho para a emoção, para o inconsciente e para a liberdade. E o racional, para trazer perseverança durante todo o processo até a sua realização, respeitando os prazos de entrega, os briefings dos clientes e o que mais for de natureza sistemática.

Para mim realização e disciplina são palavras que andam juntas, grudadas. Ainda na escola aprendi a ser bem disciplinada. Depois ao escolher ser uma profissional liberal, trabalhando com arte, foi  mais do que nunca necessário exercitar este meu lado “Caxias” para poder viver bem do meu trabalho. Brinco até que minha chefe (que sou eu mesma) é bravíssima, praticamente uma carrasca que me coloca sempre na linha.

MHS: Você é uma pernambucana que mora em SP há muito tempo. Essa mudança foi resultado mesmo de buscar um novo mercado de trabalho? Como concilia suas raízes com as exigências de uma metrópole?

Joana Lira: Vim parar em São Paulo seguindo meu coração. Na época, eu estava casada com um rapaz que teve uma proposta importante de trabalho aqui. Sempre quis sair de Recife para viver novas experiências profissionais, mas sozinha nunca tive muita coragem. Minha vida recifense era muito boa. Precisei ser puxada. Estou aqui há 13 anos e confesso que me sinto um tanto viciada nesta loucura. São Paulo é uma cidade cansativa, mas ao mesmo tempo curiosa e vibrante.

Para conseguir existir trabalhando com arte nesta metrópole insana, precisei entender tudo o que eu era para me afirmar e não ser esmagada. Vim atrás do universal, do cosmopolita e do moderno, mas minha busca por algo diferente curiosamente me fez chegar nas minhas próprias raízes. Aprendi que só com o que eu tinha de mais puro e verdadeiro eu poderia me diferenciar aqui. Foi um acalento na alma. Assim cheguei à máxima de que o regional pode, sim, ser universal. O mundo mudou, se globalizou, e tudo que era longe virou perto. Ser igual não acrescenta mais muita coisa. O legal é ser diferente, é agregar e não repetir conhecimento.

MHS: Você desenha, cria estampas, faz cerâmica, brindes, campanhas publicitárias. Você consegue separar o que é arte e/ou trabalho comercial? Ou é tudo uma coisa só? Como é criar tanta coisa diversa ao mesmo tempo?

Joana Lira: Definir o que é arte dentro do universo que transito é um pouco confuso e um tanto polêmico. As áreas da arte, da ilustração e do design têm muitas nuances de intersecção difíceis de serem definidas. Consigo diferenciar apenas um trabalho onde pude me aprofundar mais e tive maior liberdade artística de outros mais superficiais.

Me sinto muito realizada ao fazer vários trabalhos com contextos distintos ao mesmo tempo. Vejo a diversidade como um grande estímulo para minhas criações. A grandeza de um desenho e o que ele pode alcançar é algo que me fascina.

Pacote de bolacha com desenhos de Joana Lira. Crédito: www.joanalira.com.br

MHS: Como é sua relação com clientes/marcas (Coca-Cola, Antarctica, Natura, Unilever)? Você tem liberdade total de criação ou segue um briefing e os processos de aprovação normais entre cliente e fornecedor?

Joana Lira: Em geral, quando o cliente me procura já existe o desejo de agregar um valor artístico ao projeto em questão. Por isso em quase todos os trabalhos que desenvolvo tenho bastante liberdade criativa, mesmo que haja um briefing a ser seguido. Porém, todos os trabalhos passam pelo processo de aprovação. E quando é necessário algum ajuste, faço sem o menor problema. Acho inclusive até muito válido um olhar crítico sobre minhas criações. Na maioria das vezes os ajustes melhoram o resultado final.

MHS: Você já ilustrou livros de Jorge Amado, para crianças e guias. Qual a diferença de cada trabalho? É mais fácil ou dificil fazer desenhos para o público infantil?

Joana Lira: Cada trabalho tem sua particularidade e seu grau de envolvimento e dificuldade. Entretanto, uma coisa é unânime no meu processo criativo: sofro horrores de angústia até achar o caminho. E acho bem mais difícil criar para o público infantil. Criança é muito inteligente e exigente.

MHS: O que te inspira?

Joana Lira: A cultura popular brasileira me toca bastante.

MHS: Qual conselho vc daria para quem quer iniciar nesta carreira? A faculdade de design grafico é essencial ou tem outros caminhos?

Joana Lira: Nesta área de arte, design e ilustração ter um curso acadêmico não é o mais importante, mas pode ser um bom guia, principalmente para abrir a oportunidade de trocar ideias com outras pessoas com o mesmo interesse que o seu. Acho ruim ficar muito isolado. A troca de conhecimento ajuda qualquer mortal a se elevar.

MHS: Um tipo de talento especial como o seu só pode ser nato ou é possivel desenvolvê-lo com dedicação e estudo?

Joana Lira: Sempre fui muito dedicada e nunca deixei de trabalhar um segundo sequer . Acredito que com sensibilidade, curiosidade, perseverança e dedicação qualquer pessoa pode chegar onde quiser.

MHS: Como você avalia o mercado de trabalho de design gráfico/ilustração aqui no Brasil? Qual país seria um benchmarking nesta área?

Joana Lira: O mercado tem se diversificado cada vez mais. As pessoas estão mais abertas para usar desenhos em suportes diversos, as empresas querem cada vez mais agregar valor artístico às peças que oferecem ao consumidor, e para melhorar temos já diversos tipos de máquina de impressão no País. Tenho um olhar positivo. Acho que as coisas andam bem aquecidas no Brasi

Não sou tão antenada para responder que país seria um benchmarking na minha área atualmente. Posso dizer que tenho acompanhado com muita admiração o trabalho de alguns profissionais escandinavos.

Visão de mundo pela mãos da artista Joana Lira. Crédito: www.joanalira.com.br

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