Engenheiro de profissão, artista por vocação. O francês Thomas Dupal se descobriu fotógrafo e depois músico, ao chegar ao Brasil para uma viagem de férias. Com uma velha câmera analógica começou a clicar obsessivamente o modo de viver carioca que acabou resultando em uma série intitulada “Numen”.
Depois veio a paixão pela música e o projeto de gravar um CD em homenagem a Caetano Veloso. Em entrevista ao site do Movimento HotSpot, Dupal fala do seu trabalho, de sua ligação com a fotógrafa Nan Glodin da qual é assistente, de tecnologia, de criatividade e acima de tudo da paixão pelo que faz.
Crédito: Thomas Dupal |
Crédito: Thomas Dupal |
Crédito: Thomas Dupal |
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1. A série “Numen” nasce de uma paixão recente pelo Rio, mas usando uma tecnologia “antiga”. Como foi esse processo? Você simplesmente começou a fotografar com a Canon e ver o resultado?
Essa serie é o resultado de 2 anos de divagaçao fotógrafica no Rio em 2009 e 2010. Eu andava sem rumo pela cidade, batendo fotos das pessoas que eu encontrava, de amigos, das paisagens, detalhes, reflexos, sem saber bem o que eu estava fazendo, o que estava procurando…Foi só depois que eu entendi o nexo entre essas imagens. Mais de um ano após a minha volta do Rio! O uso de uma câmera “antiga” foi central nesse processo. Eu fotografava com minha Canon A1 dos anos 80 (deve ter a minha idade!) que tem defeito e, às vezes, rende exposições erradas. Ou seja, eu nunca sabia o que ia acontecer, o que estava realmente fazendo. Era uma supresa. Ora as imagens eram muito sombrias, acidentais, ora muito boas. Comecei a achar estas primeiras imagens interesantes, enigmáticas, pareciam fora do tempo, como visões do Rio de Janeiro há centenas ou milhares de anos, antes de ser uma cidade. Daí veio o nome da série, “Numen”, que se refere ao espirito das coisas e dos lugares nas crenças animistas. É como se eu tivesse tido accesso a um mundo mítico por meio dessa câmera. Não poderia ter obtido o mesmo efeito com uma câmera digital.
2. Qual foi a inspiração para a série “Numen”?
A principal inspiraçao desta série foi mesmo o Rio! Eu amo esta cidade profundamente. Cada vez que vou lá, acontece uma reaçao quimica pra mim, um encontro com a natureza, com o corpo. Essas imagens nasceram dessa reaçao. Acho que é alguma coisa a ver com os elementos, o ar tropical que apóia na pele, a água, a presença do mar, das ondas, das chuvas fortes. Quando estou lá, passo muito tempo na água, brincando nas ondas. O Rio é um lugar supersensual, tudo lá é “mais”: as curvas dos corpos, o caos da cidade, o gosto das frutas, as árvores exuberantes. Para mim, é como um retorno a alguma energia das origens, uma coisa mais bruta, mais animal. Foi essa energia que alimentou esse trabalho. Também me inspirei na música e na literatura. Artistas como Meredith Monk e Joanna Newsom, que tem uma capacidade a criar histórias muito antigas e ao mesmo tempo muito modernas, me fascinam e foram uma grande influência. Na época que eu estava fotografando, ouvia elas obsessivamente. E lia muito. Os livros do Haruki Murakami e o realismo mágico deles me inspiraram muito. A grande escritora brasileira Clarice Lispector: a descoberta da visão dela, tão curiosa, tão inspiradora, foi fundamental nesse processo e foi além disso – ela mudou a minha vida! Mas acho que a maior influença foi a do Carl Jung. Li vários livros dele, inclusive a autobiografia. O nome da série, “Numen”, vem dessa leituras. A sincronicidade, os arquétipos, a sombra.. .esses conceitos da obra dele foram centrais na realizaçao dessa série.
3. Como é a sua relação com a tecnologia? Imagem digital e análogica são mesmo diferentes? Qual você prefere?
Eu acho fotografia digital ótima! Abre grandes possibilidades criativas. Tem pessoas fazendo trabalhos incríveis com essa tecnologia, como a fotógrafo japonesa Lieko Shiga. Mas, até hoje,ainda não tive uma boa experiência com câmeras digitais. Tentei muitas vezes, e sigo tentando de vez em quando, mas sempre acabo voltando as minhas câmeras analógicas. Em primeiro lugar ,por razões sensuais. Eu amo de paixao a minha câmera Canon. É um objeto lindo, gostoso de ter na mão. Câmeras digitais de plástico não me dão vontade de brincar. Também tem essa coisa do azar, dos acasos, tudo que fez nascer a série “Numen”. Isso não poderia acontecer com uma câmera digital. E eu estou apaixonado pelo processo analógico, de não saber o que você está fazendo, de revelar as imagens, ás vezes, muito tempo depois de ter batido a foto, cada vez é uma surpresa. Tem uma poesia no processo da fotografia analógica que, até hoje, eu não achei na fotografia digital. Mas mesmo assim, vou seguir tentando. Não desisto. Acredito que seja possível achar poesia com essas tecnologias também. E na verdade, já estou desenvolvendo uma obsessão de fotografar com meu iPhone, adoro fazer aqueles polaroidozinhos de iPhone. Acho interesante essa possibilidade de criar com esses objetos do nosso cotidiano. Por agora é só de brincadeira, mas quem sabe! E comecei a fazer videozinhos com meu iPhone. Estou adorando isso. Está me dando vontade de pesquisar nessa direção.
4. Como você define criatividade?
Boa pergunta. Pra mim, criatividade tem mais a ver com a capacidade de “ouvir” do que com qualquer “ação criativa” que eu possa fazer. No meu processo ,eu não “faço” muito. Eu ouço, observo, deixo as imagens, as ideias virem até mim. Tem que criar as condições pra elas virem, mas eu não “crio” muito. Quer dizer, crio um espaço pra criação acontecer. Mas é ela que acontece, ela tem vontade própria. Eu gosto de pensar assim. Também porque a consequência disso é que essas imagens não são “minhas”, nao me pertencem. Elas passaram por mim, mas vem de não sei onde. Só sei que não é de mim!
5. O que faz um bom fotográfo?
O tipo de fotografia que eu gosto é fotografia que vem das entranhas. A verdade é que pra mim, o que faz um bom fotógrafo é a mesma coisa que faz um bom ator, um bom bailarino, um bom diretor : é a capacidade a sacar alguma verdade, alguma emoção pura. Maestria técnica e conceitos intelectuais ajudam a formular essa verdade, mas o mais importante é a alma do negócio. A maioria da fotografia contemporanêa não me estimula muito exatamente por essa razão: tem maestria técnica e conceitos elaborados, mas falta um coração batendo na obra. A fotografia contemporanêa, pelo menos a maioria que vejo nas feiras tipo “Paris Photo”, é muito formal. Fotografia feita por pessoas que estudaram belas artes e fazem tudo no mesmo jeito, com uma fórmula similar, com um conceito e uma estética muito limpos, quase clínicos, reforçada pelo uso da tecnologia digital. Esse tipo de fotografia não me toca, deixa meu coração frio. Pra mim ,um artista bom é aquele que revela verdades místicas, como diz o Bruce Nauman. Isso implica um perigo, em se arriscar, a mergulhar no desconhecido, a se perder um pouco, a pesquisar as trevas da alma, do mundo. Poucas fotografias contemporanêas têm essa carga espiritual. A Nan Goldin claramente alcança isso. O trabalho dela tem um impacto emocional poderoso. Eu lembro quando assisti o “Heartbeat” (o slideshow que retrata 5 casais fazendo amor, feito em 2011 e reeditado em 2012 especialmente pela mostra no MAM) pela primeira vez no Centro Georges Pompidou, em 2006, eu tive uma experiência super forte. Fiquei um bom tempo lá, chorando, chocado. O olhar dela sobre esses casais é ao mesmo tempo muito próximo, íntimo, e muito estranho. Era como se olhassemos aqueles seres humanos fazendo amor pela primeira vez, sem saber nada da espécie humana. Uma coisa delicada, esquisita, linda, violenta e sagrada. Sempre vou lembrar daquele momento, mudou alguma coisa em mim pra sempre. E esse tipo de fotografia que eu acho “boa”. Outros fotógrafos que alcançam isso para mim são artistas como a Claude Cahun, o Antoine d’Agata, Rineke Dijkstra.Também estou apaixonado por fotógrafos que conseguem criar mundos paralelos, oníricos, na onda do realismo mágico, como a Lieko Shiga, a Vivianne Sassen, o Roger Ballen, ou a jovem Tereza Zelenkova. Tem uns ótimos fotógrafos brasileiros que eu incluiria nessa onda, que descobri na mostra do curador Eder Chiodetto na Maison Européenne de la Photographie, em Paris ,em março passado : a Claudia Andujar, o Luiz Braga, o Rodrigo Braga. Adoro o trabalho deles.
6. Você esteve no Brasil para a desmontagem da exposição da Nan Goldin? Como avaliou a polêmica em torno do trabalho dela?
Nao deu pra vir para o finissage. Infelizmente!
Quanto a polêmica, fiquei irritado com a confusão que teve na imprensa em torno disso. A censura tinha a ver com umas poucas imagens de crianças nuas. Lamento a censura, mas acho que era uma ótima oportunidade pra falar disso, do Estatuo da Criança, no mundo, no Brasil especificamente, da representação da criança, dos tabus em torno disso. Essas questões são super interessantes e merecem um debate. Mas foi totalmente afogado numa grande confusão, os jornais falavam das imagens “chocantes” do trabalho da Nan, publicando imagens de sexo ou de uso de drogas, que não tinham nada a ver com a censura, reduzindo mais uma vez o trabalho da Nan a umas poucas imagens controversas que ocultam o que realmente é o foco da obra dela : a comédia humana na sua plenitude! O trabalho dela toca alguma coisa universal, bem além do sabor “underground” dessas imagens. Essas imagens transcendam os detalhes dos lugares e da época, para nos revelar algumas verdades sobre a condição humana.. Achei uma pena essa confusão toda e de ver a obra dela retrada mais uma vez de um jeito tão simplista e reduzido.
Enfim, no final parece que todo mundo esqueceu dessa história e a mostra aconteceu em otima condições, permitindo ao público carioca de experienciar o trabalho da Nan, sem censura. Parece que ninguém ficou especialmente chocado! Eu só ouvi retornos positivos.
7. Afinal, é bom ter uma “mestre” como ela ao lado ou acaba sendo mais dificil para seu trabalho ganhar uma identidade própria?
Trabalhar com a Nan tem sido ótimo pra mim como artista. Ver como ela trabalha, como ela pensa e escolha uma imagem, como ela joga fora, pede opinões de todo mundo e acaba indo com uma ideia louca dela no final. Ver e fazer parte desse processo dela tem me ensinado muito sobre como é que se escolha uma imagem. Isso é importantissimo. Produzir imagens é facil, para mim pelo menos é a parte fácil. Onde acontece a maior parte do trabalho é na escolha das imagens, na ediçao. É nessa parte que eu tenho aprendido muito ao lado da Nan. A coisa que mais me impressiona com ela é a sua forte intuição. O jeito que ela a segue Eu esto aprendendo a fazer a mesma coisa.
Quanto a minha identidade, eu já tinha achado minha identidade quando comecei a trabalhar com ela. O engraçado é que o trabalho dela já tinha contribuído da construçao da minha identidade artistica, me influenciou muito. Tive uma fase, há uns 5 ou 6 anos que fiquei obcecado com o trabalho dela. Já tinha essa convição que o mais importante é a emoçao, a intuiçao, essa dedicação para achar a sua própria verdade. Isso é a grande lição que tirei do trabalho dela. Conhecer e trabalhar com ela só reforçou essa conviçao.
8. Tem projetos para expor a série “Numem” aqui no Brasil?
Ainda não! Quero muito! Estou a procura de algum lugar para expor aí. Essa série nasceu no Rio. Seria genial expo-la no Brasil…
Crédito: Thomas Dupal |
Crédito: Thomas Dupal |
9. E seus projetos com a música? Seu CD terá só compositores brasileiros?
Esse projeto foi uma coisa que veio quando voltei do Brasil, em 2009. Me apaixonei totalmente pela música brasileira nessa primeira viagem. Essa mistura de sensualidade com tristeza e alegria. Até então, eu não gostava muito de música brasileira. Me parecia tudo igual, música de elevador ou samba de carnaval. Foi vivendo no Rio, ouvindo as musicas que meus amigos cariocas ouviam como Mart’nalia, Caetano Veloso, Gal Costa, Cartola que descobri a verdadeira MPB e me apaixonei. Comecei a cantá-la obsessivamente. Especialmente Caetano! Achei que era uma coisa passageira. Mas quando voltei de Paris, não conseguia parar de cantar essas músicas, Aí eu tive a ideia de fazer um projeto de covers, mas nao sabia nem como nem com quem. Eu nunca tinha cantado profisionalmente. O fato de ter achado um produtor para fazer esse projeto comigo é realmente um milagre! Até pouco tempo atrás, nem conseguia cantar na frente de pessoas! Eu começei a fazer aula de canto, em 2008, com uma mulher muito espirituosa, que me ensinou a confiar em mim, a me deixar cantar. Desde as primeiras aulas, ela me disse que eu nasci para cantar. Quando voltei do Brasil pela segunda vez, fiz um workshop com ela onde cantei o “Coração vagabundo” do Caetano Veloso, acompanhado de um piano. Era a segunda vez na minha vida que eu cantava na frente de um público. E que público! Dez pessoas que estudavam canto com a mesma professora! Minha professora gravou essa interpretação e mostrou para o seu marido, Jannick Top. Ele adorou e entrou em contato comigo pra me propor de trabalharmos juntos nesse projeto! Nem acreditei. Eu, sem experiencia nenhuma, que mal consigo cantar em público, achei um produtor estabelecido pra fazer esse projeto comigo! Pois agora, estamos trabalhando na adaptação dessas músicas. Todas de compositores brasileiro e vamos começar a gravar nos próximos meses . Estou animadissimo! O projeto terá só músicas brasileiras, cantadas em português – eu estou apaixonado pela língua portuguesa- só que com sotaquezinho, claro. A gente está pensando em fazer desse projeto uma homenagem ao Caetano Veloso. A maioria das músicas que eu gosto de cantar é dele. Faria todo o sentido. A minha meta é interpretar essas músicas com referências musicais diferentes, com sons inspirados por as minhas infuências musicais, do rock, da música francesa, etc.
10. Como é ser um artista que atua em vertentes diversas como música e fotografia?
E gostoso! É um sonho se realizando. A minha vida não era pra ser assim. Eu sou formado em engenharia industrial! Sou de uma família de engenheiros. Quando criança, me parecia que meu único destino era engenharia. Me sentia destinado a uma vida que eu não queria, que não era minha. Sempre soube que eu era artista, que queria criar alguma coisa, só que nao sabia como, nem por onde começar. Me sentia tão frustrado, tão desesperado quando jovem adulto, com 22, 23 anos. Quando escolhi me jogar nessa aventura da criatividade, primeiro com a fotografia aos 24 anos, e depois com o canto, aos 27 anos, me parecia uma coisa tão louca, tão improvável. Esse processo de explorar meus sonhos criativos tem sido uma das coisas mais desafiadoras e mais deliciosas da minha vida. Essa liberdade de criar em vários meios que eu tenho hoje é muito gostosa e preciosa..Tem que acreditar né? Eu acho que quando a gente se joga, segue aquela voz no seu coraçao que sabe, segue os seus desejos sinceros, o universo concorda e faz coisas incriveis acontecer. Surgem oportunidades loucas, encontros perfeitos. Parece que o universo conspira para te ajudar. Essa tem sido a minha experiência.